abundância e a produtividade de gramíneas. A passagem do fogo leva à disponibilização de nutrientes facilmente assimiláveis e de rápido crescimento para os rebentos tenros das plantas gramíneas (ervas nascediças), mais nutritivas e apelativas ao paladar selectivo das ovelhas.
Fomos acolhidos na Casa da Ti Cura pela Bárbara Fráguas e o José Jambas, que nos apresentaram a diferentes pessoas que têm um conhecimento profundo do território. Uma dessas pessoas, foi o pescador Escalo que nos partilhou como foi crescer num rio Douro que corria livre e cuja turbulência da água se ouvia das aldeias – a conversa que tivemos com este pescador, poderá ser lida no texto 5.
Tivemos também oportunidade de ouvir o coro de Atenor (Atanor em Mirandês), onde conhecemos a Lisete que nos foi mostrar a Fraga da Lapa, a que chamou de “garras do diabo”. Sinais do oculto, que antigamente se associavam à presença muçulmana, manifestando sentimentos aparentemente contraditórios, como o medo e a atração pelo desconhecido.
Conhecemos diferentes organizações ambientais como a Palombar – Conservação da Natureza e do Património Rural, a AEPGA – Associação para o Estudo e Proteção do Gado Asinino ou a ALDEIA – Acção, Liberdade, Desenvolvimento, Educação, Investigação e Ambiente, que nos falaram dos seus projetos e da sua visão do território.
Destes encontros e conversas surgiram muitas questões, como a relação entre a população e as barragens de Picote, Miranda e Bemposta – será que trouxeram realmente, prosperidade, bem-estar e autonomia a esta região? – ou o papel das próprias organizações ambientais – será suficiente o papel de “conservação” da natureza ou trabalho de “mitigação” dos impactos ambientais das hidroeléctricas e das grandes indústrias? Sobre estas questões, valerá a pena lerem a resposta que a Bárbara e o José nos deram à nossa pergunta (texto 6).
Percorremos diferentes aldeias na regiões de Miranda do Douro e Vimioso, das quais destacamos Sendim, Atenor, Teixeira, Uva, Vila Chã da Braciosa e Vale de Frades. Em Atenor tivemos à conversa com o pastor Luís (texto 7), conhecido pelo seu assobiar virtuoso – algumas das suas melodias poderem ser ouvidas nos [sons].
Em Vila Chã fomos à procura de uma pastora de gansos, mas acabamos por ter um encontro muito especial com a Rosa Afonso, com quem fomos apanhar cogumelos. Nesse mesmo dia a Rosa deu-nos boleia até Vale de Frades, onde conhecemos o Delmiro, conhecido pela sua arte de esculpir caldeirões, tachos e alambiques em cobre.
Estivemos na Fraga do Puio, no Castro de São João das Arribas, e nas aldeias de Paradela e Vale de Águia, que nos oferecem perspectivas das Arribas do Douro Internacional, inesquecíveis pela sua beleza e brutalidade.
PISÕES
FRAGAS
CASTRO
FINCÕES
MUROS
FREIXOS
BURRO
LAMEIRO
FRAITA
GAITA
ARRIBA
PÚIO
CAIXA DE GUERRA
BARROCAL
EDP
BARRAGEM
GRIFOS
ALVEOLA
CHURRA
SERRANA
MONTES ERMOS
POMBAL
CMTV
PLANALTO
SPACE X
TRASGA
CARTOLA
MURO DE PEDRA SECA
SEGADAS
SENHORA DO NASO
MENINO JESUS DA CARTOLINHA
CASTRO CIGADUEÑA
BELO HORRÍVEL
O senhor “Escalo”, pescador conhecido por estas bandas, fala-nos de um rio Douro temido por muitos pelas suas cachoeiras. A forte corrente deste rio levou muitos que tentavam atravessar este rio (contrabandistas e não só), e o seu correr ecoava pelos canhões e ouvia-se em Miranda do Douro, conta-nos. Tal como outros pescadores, “Escalo” cresceu e viveu deste rio, que antes da chegada das barragens, pescava com o seu pai a boga, o barbo, a tenca, a enguia, a lampreia, entre outros peixes autóctones que se deixaram de avistar, nos últimos anos, dando lugar ao lúcio-perca (uma praga introduzida recentemente nos rios, que poderemos escrever em maior detalhe numa outra publicação). Tal como estes testemunho, temos tido tantos outros de uma grande generosidade, como o Luís, pastor aqui de Atenor, conhecido como grande “assobiador” ou o Delmiro, de Vale de Frades, conhecido pela sua arte de trabalhar o cobre, que ganha forma em caldeirões, tachos ou alambiques.
Hoje estivemos em São Joanicos onde avistamos pela primeira vez a água a correr no rio Angueira. A jusante parámos em Vila Chã para ir ao encontro dos Pisões, antigos moinhos onde se pisava a lã, agora ao abandono nas margens secas do Angueira. Ao abandono estão também os poucos homens e mulheres que vivem nestas aldeias e que têm partilhado connosco um pouco da sua vida e da vida dos animais, das pedras, dos rios. Tudo parece estar à espera que alguma coisa aconteça ou que chegue alguém, como no caso do Rio Angueira, sequioso pelo chegar da água destas primeiras chuvas
As residências Guarda-Rios em Vila Velha de Ródão e Atenor constituíram portas de acesso às regiões do Tejo e Douro Internacional e respectivos parques naturais, que integram a zona raiana ao longo da fronteira entre Portugal e Espanha, definida em parte pelos dois rios emblemáticos que nascem do lado espanhol. Na primeira, explorámos as margens do Tejo e de alguns dos seus afluentes: rios Sever, Pônsul e Erges, e as ribeiras de Aravil e Fonte Santa. Na segunda, as fragas do Douro, a foz do rio Maçãs e a ribeira de Angueira.
Nas margens desses rios e ribeiras encontrámos vestígios da história recente da ocupação humana dos respectivos territórios, com as diferentes actividades e tecnologias que aproveitaram os recursos hídricos – da pesca e das azenhas, às barragens que domaram o seu caudal e transformaram aqueles rios, outrora livres, em albufeiras, mudando profundamente a paisagem. A expressão ‘terra de ninguém’, que é por vezes associada à palavra raia, tem naqueles territórios da Beira Baixa e de Trás-os-Montes um significado quase literal – são de facto regiões de muito baixa densidade populacional, agravada pela desertificação humana das zonas rurais das últimas décadas, e em que a população restante está envelhecida.
Mais do que isso, constatámos uma sensação de abandono ligada, não só a um desinvestimento por parte do poder central, mas também ao desaparecimento gradual e/ou à desvalorização das actividades ligadas à terra e aos rios. Essa sensação é compensada em parte pela presença de algumas actividades industriais ou comerciais, que trouxeram algumas melhorias do nível de vida, e de que são exemplo a fábrica de pasta de papel em Vila Velha de Ródão (Tejo) e as barragens de Miranda, Bemposta e Picote (Douro). No entanto, foram também evidentes as riquezas patrimoniais, paisagísticas e naturais ainda existentes naqueles territórios, que poderiam contribuir para valorizar esses mesmos territórios e as suas populações, muito para além dos aproveitamentos mais ou menos incipientes das iniciativas turísticas (públicas ou privadas). A aposta nos valores naturais e paisagísticos esteve associada à criação dos parques naturais nos dois territórios, mas os benefícios para as populações locais pareceram-nos menos evidentes.
Das histórias ligadas aos rios, recorrentes nos dois territórios, destacam-se as que ouvimos da boca dos pescadores que nos falaram das técnicas e artes da pesca, específicas para as diferentes espécies de peixes, mas também da mudança nessas mesmas espécies ao longo do tempo, com a construção das barragens (que impedem a migração de certas espécies) ou a introdução de espécies exóticas, que levaram à substituição das espécies autóctones (p.ex. o barbo) por espécies invasivas (p.ex. o lagostim-vermelho) ou predadoras (p.ex. o lúcio-perca).
Outras mudanças, evidentes na paisagem ou por via de testemunhos, aconteceram ao nível das actividades agrícolas e pastoris. Por um lado, com o abandono progressivo da agricultura de subsistência ou de pequena dimensão, por vezes substituídas por explorações maiores ou mais intensivas, e por outro, com a redução dos rebanhos de ovelhas e/ou cabras e do número de pastores. Essas mudanças foram evidentes não só pela leitura da paisagem como também pelo estado de abandono de várias construções como muros, abrigos e estruturas específicas, como as azenhas e as furdas, no Tejo, e os pisões e pombais, no Douro. Em ambas as regiões as rochas dominantes – xisto e granito – foram presenças constantes, assim como os matagais mediterrânicos e alguns bosquetes de carvalhos (azinho e sobro, no Tejo, e negral, no Douro), que por vezes retomam os terrenos agrícolas abandonados.
Mais conhecido por “Escalo”, António Velho é um pescador carismático da aldeia de Bemposta, a sua família e o próprio, aparecem no filme “Trás-os-Montes”(1976) de António Reis e de Margarida Cordeiro.
LOCAL: Café-bar Emigrante, Bemposta
DATA: 18 de Novembro, 2019
ESCALO:
Deixávamos as redes armadas, e ficávamos toda a noite à pesca botavamos à tarde, tirávamos de manhã….o meu pai pescava com o paradelho à mão, eu como consegui arranjar um barco, a pesca como sou a ser mais rentável.. O meu pai usava umas redes aí de uns 5 metros, A que chamavamos de paradelhos, de malha livre, que não tinha bolso.. porque há redes, há estramalhos que fazem bolso.. nós não, naquele tempo era tudo paradelhos.
.. quando o meu pai apanhava 3, 4 kg era muito naquele tempo… que vendia para uma taberna, para revender aí.. mas quando fui criado, comecei a apanhar muitos.
GUARDA RIOS:
Quantos kg é que apanhava?
ESCALO:
300, 200..
Tinha um revendendor em Arnozelo.. que se chamava Francisco, Francisco Bacheio.
Esse foi o primeiro revendedor que eu tive.. até lhe vendia o peixe a 5 paus o kilo, e ele vendia-o a 10, pelas aldeias.. não tínhamos meio de transporte, ainda íamos daqui a pé ao rio.. com as redes.. com 70 kilos às costas.. naquele tempo não tínhamos meios, até arranjar dinheiro para comprar uma motorizada.
7:33
ESCALO:
… comecei a pescar ainda antes da Barragem de Miranda, quando ainda era garoto.. com 7, 8 anos ia com o meu pai montar os tais paradelhos..
GR:
Como é que ia lá para baixo para o rio?
ESCALO:
Íamos pelos carreiros dos moleiros.. que havia azenhas.. sim havia azenhas no Douro.. isso está tudo debaixo de água! do lado de baixo da Barragem, ainda algumas estão à mostra.
GR:
E em que zona do rio costumava pescar?
ESCALO:
Fazia a zona no Castro de Espanha, onde o Douro entra em Portugal.. em Paradela da Raia. Eu fazia aquela zona.. eu já pescava aqui e ainda ia lá buscar.. tinha três barcos..
Cheguei a pescar pela Lagoaça, Freixo…
GR: mas diga-me uma coisa, o rio quando era livre não era perigoso?
ESCALO:
Pois era, tinha muita cachoeira, tinha muitas quedas de água fortes.. e nadar.. eu nadava bem.. era perigoso eu nadar.. eu conhecia sítios que ficavam lá vários! Em Aldeia Nova por baixo de Paradela, há uma capela que lhe chamam a Capela de São João, em baixo havia um remanso e ali diziam que se tinham afogado lá duas ou três pessoas.
E um dia.. e um dia vou-lhe contar, ia eu e o meu padrinho, e o meu pai, a armar os paradelhos a esse sítio, por debaixo da Capela de São João.. então eu tinha estado a comer, eu e o meu pai… e comi pimentos desses lá da.. crus.. quando íamos, levávamos a redes em saquitos.. quando ia no caminho pôs-se-me uma dor de barriga.. eu rebolava-me no chão.. eu cheguei a pôr os dedos na boca e senti praticamente.. tampa! Aquilo mexeu-me tudo, e o meu padrinho, que ia comigo e eu meu pai, dizia-me “isso passa!”.. eu chego ao tal sítio da aldeia do meu pai, atiro-me ao rio ali por trás, nesse tal remanso e… desapareceu-me a dor de barriga! Aquilo foi remédio santo! Mas depois diziam os antigos que ali já se tinha afogado muita gente. Depois da parte de baixo havia uma cachoeira forte, e ali um gajo se se deixa apanhar por aquela cachoeira, não tinha salvação..
GR:
Porque é que então decidiu mergulhar num lugar tão perigoso?
ESCALO:
Ahh eu mergulhava, eu prendia as cordas a umas enguias, o que chamamos uns cordéis e prendiamos nos rios..a enguia emburacava-se.. cheguei a fazer muitas vezes…abaixava por corda abaixo, mergulhava, a soltar a enguia e a trazê-la para cima e isso era perigoso. Às vezes voltava atormentado..
GR:
E deveria ser bem fria a água..
ESCALO:
Ah eu não sentia a água, estava habituado. Lá em Miranda no tempo da barragem, quando fizeram a primeira barragem lá, eu pescava a meias com um pescador, o pescador era eu, com o Zé Maria, um gajo comerciante, já morreu, então ele comprou um barco para pescarmos a meias. Um barco “Rabelo”.. tinha-se que remar de pé.. eu não me ajeitava com aqueles barcos.. mas lá andei. Mas quando tinha sede, a barragem já estava cheia, mergulhava 5, 6 metros para beber água fresca. Em cima aí a 2 metros estava quente para cima, mas para baixo estava gelada, então ia para lá, enchia a barriga de água e depois vinha para cima.. para tirar a sede.
GR:
E o que é que se pescava nessa altura?
ESCALO:
Barbos e Bogas, Escalos, Enguias..
GR: Escalo?
ESCALO:
Sim, sim o peixe que se chama Escalo, a mim também me chamam Escalo.. e os meus filhos são os Escalicos (risos).
Dizem, “ah dão-lhe o nome de Escalo por ser pescador”, não senhor. Eu vou-lhe contar a história do Escalo. Quando o meu pai era garoto.. o meu pai chamava-se Julísio (?), “mas puseram-lhe o nome de Escalo porque andou aos peixes?” O meu pai: “não, Escalo puseram a um irmão meu”, que morreu lá para as Áfricas.. foi para.. como é que aquilo se chama.. Buenos Aires, foi para Buenos Aires e nunca mais escreveu, nem apareceu.. Foi assim: um tio meu e mais dois primos, iam sair numa égua e foram-na dar água a um chafariz em Miranda, que está lá. E viram a tal mulher, e chamaram-na “oh lavafunga!”, uma alcunha.. e ela desancada, agarra numa pedra e atira com ela, tira-lhe um olho a um tio meu! tira-lhe um olho, quer dizer cortou-lhe.. “ooooou queriam-lhe por um olho de Escalo, de Escalo”.. ele depois desapareceu, ficou o “Escalo” o meu pai, e agora “Escalo” o filho.
GR:
Mas porquê olho de escalo?
ESCALO:
Porque ficou defeituoso, ficou seco daquela vista.. “olha um olho de Escalo!” “olha um olho de Escalo!” Isto, daquilo que ouvi contar o meu pai.
GR:
E o Escalo era um peixo pequeno, médio.. como era o peixe Escalo?
ESCALO:
Era um peixe mais ou menos de palmo e pouco, atingia meio kilo no máximo.. umas 450 gramas.. o Barbo atinge já há volta de 7, 8 kilos.. era o que havia antigamente.. a Boga era o forte do rio, agora não há Bogas..
GR:
E hoje que peixe ainda se encontra no rio?
ESCALO:
A truta salmonilha.. que é cor-de-rosa por dentro com pintas.. naquele tempo apanhei trutas a 7 kilos.. mas trutas sempre a 5, 6 kilos.. este ano já apanhamos duas ou três.. os rapazes vão muito às redes só para comer.. por aqui não há peixe de revenda.
A Carpa está a terminar, há pouca.. a Carpa era o forte, também havia muita.
Há o Lúcio-perca, que devora tudo quanto há! Já apanhei uns de 10 kilos e metade do alimento deles é os próprios filhos, comem tudo. Comem tudo esses gajos. 20:43
E depois temos o Lúcio normal, mas desses há poucos, apareceram e estão a desaparecer. Agora, o que está a vigorar é o Lúcio-Perca e o Albúrnio, são uns peixitos assim mais ou menos, que não prestam, são fracos.. mas fazem muita criação, fazem duas, três criações durante o ano. O rio está a ficar todo com esse peixe, um peixe que não tem saída.. que não tem muito alimento.
GR:
Falou a certa alturas das enguias, pescava-se muita por aqui?
ESCALO:
Enguia havia muitas! Mas era mais má de apanhar.
GR:
Como é que então pescavam a Enguia aqui?
ESCALO:
Com uma corda, eu cheguei a ter uma de 100 metros, cada metro um anzol.. Então armamos uma corda que poderia ter 4, 5 ou 6 enguias, ou não ter nada.. a corda tinha à volta de 70, 80 anzóis.
GR:
E pescavam-na quando?
ESCALO:
No verão.
De Barca de Alva para baixo pescava-se a Enguia com covos (?), uns cestos feitos de verga salgueira que tinham um funil com umas estrias na ponta. O peixe entrava, mas não acertava para sair. Chamavam-se covos (?), mas eu aqui não usei.
GR:
E a lampreia?
ESCALO:
Aqui no Douro a lampreia subia do Porto até ao Freixo, onde existiam várias presas para apanhá-la. Uma presa é um canal e depois punham lá uma rede para apanhar a Lampreia.
GR:
Antigamente qual era forma mais comum de se pescar aqui no Douro Internacional?
ESCALO:
Aqui os antigos pescavam à chumbeira. No Tejo chamavam-lhe uma tarrafa, uma rede de lançar, aquilo cai e arrasta tudo.. tem chumbos, ao lançar abre, cai e depois já na água fecha-se.
(…)
ESCALO:
O primeiro barco que arranjei, fui comprá-lo a Constância.
GR:
Porque é que foi para lá até tão longe comprar um barco?
ESCALO:
Porque o barco “Rabelo”, desses do Douro, eu não me ajeitava com esse barco, pois tinha que estar em pé. O barco do Tejo permitia-me estar sentado. Eu nessa altura trabalhava aqui na Barragem [Bemposta], havia lá um engenheiro, e eu soube que iam mandar rectificar umas electrizes das turbinas da barragem.. iam rectifica-las em cimento no Tramagal e eu cheguei ao senhor engenheiro e disse “oh senhor engenheiro, ouvi dizer que ia mandar o camião amanhã ao Tramagal, se me pudesse autorizar o chauffer, que tenho lá um barco (e não o tinha) para trazer e tal” ,”autorizo sim, manda-se chamar o chauffer”. Lá em Constância, falei lá com o artista, não me lembro do nome dele, comprei o barco a ele. 38:18 Depois para o levar de Constância ao Tramagal, paguei lá a um homem por 20 escudos.. naquele tempo 20 era um ordenado bom. Era inverno, o homem levou-me dois a levá-lo lá, então levou-me mais 20 euros… Mas cá tenho o barco. O nome dele é “Jeitosa”, já tinha esse nome quando me foi vendido.
GR:
Lembra-se qual a madeira utilizada na “Jeitosa”?
ESCALO:
Eu entretanto já o vendi. Era de pinho, de pinho verde. O pinho verde, seco não é bom, apodrece logo, mas se andar sempre molhado aguenta-se muito tempo.
(…)
ESCALO:
Para se montar os “Rabelos”, ia-se ao Freixo comprar tomento, aquela estopas de linha. Com essas estopas fazíamos uma torcida depois com um calafeto e um martelo metíamos entre as tábuas. Então depois levava o breu. Em 20 kilos de breu metíamos 4 kilos de sebo para não escachar, o sebo derretia e ficava macio. O alcatrão [breu] com o fogo derretia, e no inverno secava e partia-se todo. Levava o sebo para o proteger, tanto do calor como do frio. Depois agarrávamos num pau assim e num bocado de pêlo de cordeiro.. molhávamo-lo e esgoláva-mo em todo o barco.. aquilo colava tudo, e assim não entrava água. Aquilo era feito cada 3, 4 anos. 43:43
(…)
ESCALO:
Os espanhóis não pescavam. Então havia remansos do lado de espanha, onde punha a rede às costas a nadar, para atravessar o rio, e depois punha a rede, o tal paradelho, depois andava um pouco mais um punha outra paradelho. Dependendo do tamanho desse remanso, poderia chegar a meter uma rede de 10 metros. Se fosse um remanso pequeno, metia uma rede de 5 metros. Por vezes havia uma cachoeira forte que não me permitia passar, e por vezes que tinha que subir o rio e dar a volta por cima. Havia outros sítios, que o rio era manso e ia a nadar por borda acima ou borda abaixo.
Mas valia a pena, porque quando se sacava um paradelho, com 9, 10 peixes… 7 peixes fazia um kilo naquele tempo, 7 bogas era um kilo mais ou menos, já era bom! Um tipo que trouxesse 7 ou 8 kilos já era espectacular.
ESCALO:
A primeira vez.. vou-lhe contar esta. O meu pai quando apanhava 4, 5 kilos de peixe.. nós pescavamos à bomba também.. era proibido! Eu ia buscar dinamite a Espanha..
GR:
Comprava através dos contrabandistas?
ESCALO:
Ahh ia lá eu! Uma vez trazia dois pacotes dele, calharam-me dois carabineiros atrás de mim, e eu andava descalço.. “Ah eu te mato! Te mato! Te mato!” e eu “abre!” e fugi, eles iam-me apanhar, mas quem me apanhava a mim! Descalço! Quando calcei os primeiros sapatos, eu tinha 20 anos e foram emprestados. A vida era terrível.
GR:
Os carabineiros eram espanhóis ou portugueses?
ESCALO:
Espanhóis.
O meu pai.. passou a noite junto a uma azenha, e ao ser de dia, para vir com o peixe para casa.. eu era putozito pequeno.. era para aí umas cinco da manhã, verão, e digo “carai”, o meu pai.. ainda era longe.. O meu pai também era um bocadinho surdo, vou botar um tiro aqui e ali, tudo errado, não deu nada.. A donde está a azenha, adonde está a barragem, ao entrar em Miranda, ao chegares ali para o rio, há uma curva, até vês um penedo.. que segue directo para a Barragem.. o meu pai ficou ali.. onde está o barco de passeio.. o meu pai ficou ali no fundo, ainda não era barragem, era um rio antigamente.. e eu vim cá para baixo… fazia assim um ventesito, eram umas cinco da manhã, e sentia por lá os peixes “pumba, pumba”, do lado de Espanha. Eu agarro num tiro pego lume para o lado de Espanha… tudo branco, saíram alguns 6 kilos.. Apanhei aquele peixe todo, a nadar, tinha um saco de renda. O meu pai estava todo contente que tinha apanhado dois barbos ou três.. e eu digo “venha comigo”.. O meu pai quando lá chegou, ficou maluco de ver tanto peixe. Depois tivemos sorte que apareceu uma prima minha que nos levou, ia com os burros la para o monte.. E trouxe-me o peixe para Miranda, e vendomo-lo a 10 paus o kilo, naquele tempo.
Naquele mesmo sítio também, ato três paradelhos para atravessar o rio, fecharam a água em Picote e Paradela, e a água ficou parada.. passado um bocado vou ver novamente as redes e conto 99 bogas! Faltava uma para cem, nunca mais me esqueço!
O meu pai era pescador, mas nunca apanhou peixe.
(…)
1:00:00
ESCALO:
Ali por cima de Miranda, em baixo de Vale de Aguia, há ali um cachão [cachoeira] grande, que chamam a “Buraca”, ali quando abaixa um bocadinho o rio, passava-se de pé em pé, o rio passava por baixo dos penedos. O perigo é que o vapor da água criava gelo em cima das pedras.. escorregava um gajo caia para lá.. adeus. Então nós às vezes.. levávamos areia nos bolsos e lançávamos por cima daquelas pedras que eram escorregadias.
Por cima de Miranda ha um sitio que chamam o “Manto da Senhora”, há uma fraga que parece mesmo a nossa senhora com um manto. O meu pai e eu, diziamos então “aaai vamos montar as redes no Manto da Senhora?”. Mais acima ao dar curva, estão as “ribeirinhas” e mais acima ainda está um buraco, a que chamam “A buraca”, nós subíamos a prumo (?) por umas giestas que havia ali, por mais de 300 metros. Era onde passam os antigos e os contrabandistas, quando podiam passar pelo rio, estando agora cheio [com a barragem] já não se pode passar. Nesse tal sitio que chamam “Buraca”, ali no cimo, esta la uma casota feita em pedra, com um pilar no meio, que tem la uma cruz feita em pedra.. e dizem os antigos, que foi um portugues que mataram la, os espanhois. Namorava com uma espanhola, e os irmãos mataram-nos. Isso contou-me um cacador… íamos à caça para lá, ao coelho. 1:07:00
(…)
GR:
Chegou a ver algum contrabandista?
ESCALO:
Então nós passávamos contrabando. Os espanhóis chegavam lá “António podes-me trazer dois, três kilos de café”, eu chegava ao quartel Português e dizia “oh fulano estão lá em baixo uns carabineiros, mandaram-me que levasse três kilos de café” e então lá levava o café. Não ganhava nada com isso, éramos amigos.
Mas contrabando mesmo, fiz aqui em Bemposta.. e só quinze dias. Em quinze dias cheguei a passar um camião de tabaco, levava caixas com peixe e outras com tabaco, passava pelos guardas com o camião e eles não davam conta. Os guardas tinham uma barraca à porta da Barragem. Vou-lhe contar outra. Conduzi quarenta anos sem carta e nunca me apanharam. Tenho aí provas para vocês verem (risos).
(…)
GR:
Chegou a conhecer alguns Guarda-Rios?
ESCALO:
Guarda-Fios?
GR:
Rios, os senhores que guardavam, fiscalizavam os rios.
Escalo:
Ahh Guarda-Rios!
GR:
Sim, sim mas já agora poderia nos explicar o que era um Guarda-Fios?
ESCALO:
Era o dos telefones. Havia uma trovoada, havia um vento, partia um poste..
GR:
Os Guarda-Fios reparavam e faziam manutenção. Muito bem, mas voltando ao “Guarda-Rios” (risos) havia aqui no Douro ou nas ribeiras aqui por perto?
ESCALO:
Sim sim, havia aqui no Douro e nas ribeiras. Antigamente, eram os Guarda-Rios que tomavam conta da licença da pesca. Só mais mais tarde é que entrou benetória, uma guarda da pesca caça. Os Guarda-Rios tomavam conta também das escavações que fizessem à beira do rio ou dos regatos.
Conheci pelo menos dois Guarda-Rios. Anda um aí em Sendim, chamavam-lo “testa abulada”, tinha uma cicatriz, e era mau o filho-da-puta.. uma vez tinha lhe vendido uns peixitos a uma gaja que tinha uma tasca, tinha-lhe vendido 2 kilos deles.. e esse Guarda-Rios vai lá, reparou nos peixes e multou a mulher.. e eu paguei-lhe a multa..
Ora havia outro em Miranda, que se chamava António, que tinha 4, 5 filhos, nunca me autuou, era bom rapaz.. um homem trabalhador. Houve uma vez que me chamou para eu fazer uma enxertia de umas videiras.. o homem também fazia esse tipo de trabalho, de meter pessoas de confiança.. o ordenado de um Guarda-Rios antigamente era fraco, ganhavam pouco.
Uma vez, num remanse, estava lá o “Endorinho”, chamávamos-lo assim a esse Guarda-Rios.. lá nos aborrecemos por qualquer coisa e à tardita eu ia dar um tiro.. conforme ia dar o tiro, saiu-me o Guarda-Rios “Ah andas a fazer vigarices!”.. mas não me aconteceu nada.
GR:
Mas se por exemplo o Escalo fosse apanhado por um Guarda-Rios a pescar no tempo de defeso, o que é que lhe aconteceria?
ESCALO:
Iria para preso e julgado em tribunal. Chamavam a GNR e levavam-me para a cadeia.
GR:
Aqui qual é o período de defeso?
ESCALO:
Aqui é quatro meses, a partir de dia 15 de Março. A partir de Barca de Alva para baixo é 3 meses. Aqui é mais um mês, porque é rio internacional. 1:39:00
Agora vou contar esta, quando fui pescar a Lagoaça, ali na Barragem de Aldeadávila.. então fui lá pescar, dia 10 de Junho, era proibido – ali de Barca de Alva para baixo já era autorizado – mas ali em Lagoaça se deve estar em defeso até ao fim do mês. Mas o meu revendedor de Bragança, ali de Macedo de Cavaleiros, “aii arranja-me uns peixes para vender e tal” .. que me animou a pescar. Quando ja tinha o peixe carregado e as redes dentro da carrinha, vejo ai mais dois carros, que julguei serem de pescadores, quando me aproximei, saiu o guarda “o seu bilhete de identidade!”. Resultado fui a tribunal com advogado e arranjei testemunhas que argumentaram que o pescado aquele peixe em Barca-de-Alva.
(…)
ESCALO:
Eu cheguei a estar 9 meses preso.
Tinha eu dezassete anos. Eu ias para as eiras, a andar nos trilhos, a trilhar o pão. Eu ia para eiras porquê? para alguém me dar alguma coisa de comer, eu fiquem sem mãe aos dois anos. Quando uma vez um senhor me pediu “traz água pá”.. lá trazia aquelas vasilhas de barro espanholas.. e enquanto o senhor bebia a água, biquei um pouco do seu almoço.. ele zangou-se todo, agarrou numa pedra, atirou-me com ela e acertou-me aqui no braço. Depois de ver o sangue a escorrer-me pela mão, atirei uma pedra ao homem e ia-o matando.. teve 60 dias no hospital.. os irmãos fizeram queixa à guarda e fui preso.
(…)
ESCALO:
Eu fui contratado para trabalhar na área da metalização, aqui na Barragem da Bemposta, através de uma empresa de Lisboa, a Lusofal. Fazia decapagem com ar e areia, com pressão de ar. Depois havia umas pistolas que levavam um fio de zinco que deitava em liquido, mas vaporizador… eu fazia metalização, cromagens.. dos depósitos, das varandas, das comportas das barragens.. aquilo durava 30, 40 anos sem ferrugem.
ESCALO:
Falando novamente nos paradelhos,nós armávamos uma corda à mão que atávamos a uma pedra à frente, como da nossa mesa ao balcão e outras pedras de meio kilo debaixo de água.. levava os anzóis.. e ficávamos lá a dormir e depois de manhã retirávamos.
GR:
E ficavam lá a dormir no barco?
ESCALO:
A pé, não havia barco naquele tempo.
GR:
Ah então ficavam a dormir nas margens do rio, levavam um cobertor..
ESCALO:
Qual cobertor! levávamos um casaco ou uma samarra e fazia-se uma fogueira. A geada de manhã, por vezes faziam nevadas…
(…)
ESCALO:
Eu conheço o rio por baixo, como por cima.
1:57:00
Sócios gerentes da Oriolus-Ambiente e Ecoturismo, Bárbara e José residem no Planalto Mirandês desde 1995. Vivem em Atenor desde 2008 numa casa antiga de traça tradicional por eles reconstruída.
São criadores de Burros de Miranda que se encontram nos terrenos contíguos à Casa da Ti Cura, unidade de turismo rural que lhes pertence. Em Portugal são pioneiros numa experiência de extração de leite de burra, que posteriormente originou o projeto de produção de sabonetes e cremes à base deste leite e que são comercializados sob a marca “Tomelo”.
LOCAL: Casa da Ti Cura
DATA: 22 de Novembro, 2019
GUARDA RIOS:
Parte do motivo que nos trouxe até Atenor e a outros lugares do interior do país, foi porque acreditamos que poderíamos experienciar e observar modos de vida que ainda dependem de uma relação de proximidade entre as pessoas e de ligação com os animais e o meio ambiente.
Sendo que vieram para Miranda do Douro à cerca de 25 anos atrás e dado o vosso conhecimento vasto do território, gostaríamos de saber como é que vêem a situação actual destes lugares e qual o seu futuro?
BÁRBARA FRÁGUAS:
Uma coisa é a relação das pessoas daqui desta região com a natureza, com o meio-ambiente, com o meio com que elas lidam directamente. E embora sejam um grupo de pessoas, que no fundo, pelo modo de vida, pela sua história tenham uma ligação mais forte à terra, aos rios e a tudo, por todos os ofícios, por todos os seus modos de vida, eu sinto que neste momento, a maior parte delas não tem respeito pelo meio. Na verdade não sei se isso sempre aconteceu, ou se é uma coisa mais recente que se foi perdendo, se calhar, com as gerações. Se calhar as gerações passadas teriam mais esse respeito. Estou aqui a tentar pensar. Mas se calhar sim, se uma pessoa ao falar com os velhotes e isso, um pessoa sente que havia mais esse cuidado, em respeitar, em não sujar, em não não explorar demasiado, não é? Ou se isso é uma coisa que sempre… uma mentalidade que sempre existiu ou não.
Por exemplo os lameiros, o caso dos lameiros, da exploração dos freixos. Antigamente havia sempre o cuidado de, se se cortava, cortava-se só um freixo. O que se fazia normalmente era podar e aproveitar a lenha que tiravam, mas pela poda, uma poda sustentável, no fundo. Havia a preocupação das pessoas em que, as gerações que viriam depois tivessem também aquilo que eles tinham naquele momento. E agora não se sente isso. Porque é que isso se modificou?
Eu continuo a acreditar que a educação ambiental, que a sensibilização ambiental, principalmente dos mais novos, que é um factor importante nisto tudo.
A grande maioria dos jovens nesta região crescem com o ensinamento que viver aqui é uma porcaria. Que não têm condições, que eles quando crescerem têm é que emigrar e ir para outro lado. Não lhes é incitado o amor pela terra. Não lhes é mostrado o que é que esta terra tem de valor, e o que é que tem de bonito, o que é que pode ser aproveitado.
É o que costumo dizer sempre às pessoas que levo nas visitas ao parque: este parque só existe, estas aves só aqui estão – que são a razão da criação do parque – porque está aqui o homem. E de certa forma também temos que acarinhar esse homem e temos que criar condições para que ele continue a querer estar aqui.
(…) Um turismo essencialmente orientado para os valores naturais e para a cultura e tradições. Agora, sem transformar de forma nenhuma as aldeias e as pessoas num museu vivo. Acho que o importante não é chegarem as pessoas aqui, ou a fotografar as pessoas, ou o que seja. Acho que o mais importante é as pessoas virem com tempo.
Deveriam ser criados mais apoios para essas pessoas [que vêm de fora para se estabelecerem aqui]. Apoios a nível de projectos, a nível de habitação, a nível de saúde. Apoios que incentivem essas pessoas a criarem um projecto de vida numa outra zona, numa zona considerada despovoada, do interior.
JOSÉ JAMBAS:
Estes rios, sobretudo os rios de montanha, do interior, sempre foram um corredor ecológico para a fauna. A comunidade avifaunística sempre encontrou nas margens dos rios mais selvagens, como o Sabor, o Côa, Douro, o Angueira, o habitat mais adequado para a sua sobrevivência. Claro que, quando criamos barreira físicas que impedem essa dinâmica dos rios, estamos a destruir e a condicionar tudo o que move à volta dele.
A única coisa que poderia funcionar e ser um elemento chave na fixação das populações, seria turismo da natureza, o turismo associado aos rios selvagens. Vemos que os rios com albufeiras funcionam onde há massa humana, ou seja, dá para praticar desportos náuticos mais corriqueiros, [andar de] barco, enfim. [actividades de } Águas bravas e coisas ligadas à dinâmica de um rio, não se podem praticar próximo de uma cidade, que aí os rios já estão cheios de barreiras. Todas estas actividades que se poderia fazer no interior, acabam por se perder porque, ao fim e ao cabo, há estas barragens. O resto associado aos rios, que seria observação de fauna e flora, acaba também por desaparecer porque o território de algumas espécies cada vez mais vai sendo reduzido. Associado a isto, fogos florestais, o futuro é bastante complicado…
Todas as práticas agro-pastoris que, de certa forma, também mantinham algumas espécies, tendem a desaparecer. Por exemplo, os lameiros tradicionais que vemos aqui no planalto existem porque há raças autóctones e ainda há população que cuida das vacas. Apesar da população ser cada vez mais idosa… Se de facto não houver inversão, se não houver fixação da população e que recuperem estas técnicas agro-pastoris, isto tende a desaparecer. E há aqui uma série de espécies selvagens, da avifauna, que dependem delas.
Que dependem, por exemplo, da pastorícia de percurso, que tende a desaparecer porque cada vez mais os pastores são idosos. Eles fazem dezenas de quilómetros durante o dia, durante o mês, durante o ano, enfim, são milhares de quilómetros e repara, o facto de sair de manhã com as ovelhas, fazer um percurso e voltar a casa, no dia seguinte fazer outro percurso, nunca é o mesmo… em termos biológicos, em termos de distribuição de biodiversidade, é brutal. A quantidade de sementinhas que são espalhadas ao longo do dia por uma ovelha, isso dava uma tese de doutoramento fantástica.
Não é necessário dar subsídios às pessoas. É dar-lhes condições e incentivos para que possam trabalhar. Minimizar os impostos que se pagam, às empresas que se queiram fixar aqui; as empresas associadas à agricultura [por exemplo]. Não dar dinheiro, mas retê-lo nas pessoas que trabalham.
Vemos que o território está a sofrer significativas alterações. Cada vez mais há o abandono agrícola. Há espécies de flora que estão a ocupar esses espaços abandonados, como é o caso da esteva. E vemos que, ano após ano, há fogos florestais. O negócio que se poderia implementar aqui, era explorar a esteva como… nem é preciso cultivá-la, é simplesmente aproveitar o que há em estado selvagem. Faziam-se linhas de contenção de incêndios, aproveitava-se essa planta cortada e destilada e servia para se utilizar em cosmética. Só para terem ideia, o valor do litro de óleo de esteva, anda à volta de mil euros. Portanto, este é um nicho de negócio interessante. Por um lado, protegia-se todo o ecossistema contra, ou minimizava-se o impacto dos fogos florestais, e por outro estava-se a aproveitar uma espécie sem valor nenhum – a esteva, em termos biológicos, ocupa solos muito pobres.
As barragens que estão ao longo do Douro, que destruíram parte da paisagem, a energia que se produz lá, porque é que não é mais barata para aqueles que sofreram com as consequências da barragem? Somos nós que levamos todos os dias com postes de alta tensão, com cargas electromagnéticas que são altamente cancerígenas e não há nenhum tipo de compensação (…).
Agora está na moda a amêndoa. (…) Como houve a crise da amêndoa nos EUA, neste momento parece que Portugal descobriu a pólvora. E está a destruir amendoais tradicionais, com variedades tradicionais, com um paladar riquíssimo, para as substituir por variedades completamente diferentes, sem paladar nenhum, sem qualidade.. (…) Em vez de estarmos a produzir quantidade, que geograficamente não temos capacidade para produzir quantidade, vamos apostar em qualidade. E a qualidade é aproveitar as variedades tradicionais, diferentes do resto.
As barragens ao longo do Douro já nem são controladas a partir da Régua. Já só são controladas a partir do Porto. Inclusive a do Sabor, o sistema de segurança é feito com câmaras de vigilância. Só quando há um problema qualquer é que vai lá a GNR, vai lá porque foi accionada pela EDP. Nem sequer um guarda nocturno já tem. E que mais valia é que trouxe? Trouxe, durante três ou quatro anos, que deu dinheiro ao fulano do tasco ali da povoação mais próxima e mais nada. E inundou olivais tradicionais, inundou amendoais tradicionais, vinhas, e arruinou um possível tipo de turismo de natureza interessante. (…) “Sim, sim, venha a barragem, e o progresso!” (…) Agora, querem água? É proibido tirar água daqui do rio.
Como é que isto se resolvia? Produzir-se onde se gasta.
Bastava meter-se um sistema de turbinas nas zonas de maré, em que a água sobe e desce, sobe e desce e está sempre a produzir. Com vantagem de, o facto de estar nas zonas de maré, e sabemos onde é que há maior população, é: produz aqui – gasta aqui. Não é produz aqui, e transporta para lá, com as perdas associadas.
A barragem do Sabor foi construída (…), mas o que é facto é que houve vários estudos que provaram que a barragem do Sabor não fazia sentido. Bastaria que metade do dinheiro que se gastou na construção da barragem , metade… ! Se substituíssem tudo o que era janelas e portas dos edifícios públicos para equipamento com maior eficiência energética, conseguir-se-ia poupar tanto quanto aquilo que se iria produzir. Logo aí poupávamos de duas maneiras: poupávamos no dinheiro que se ia gastar na construção, poupávamos um rio. E melhorávamos a qualidade de vida das pessoas que trabalham nesses edifícios. O objectivo não era produzir energia. Tanto que a barragem está à venda. Então, mas afinal, antes o objectivo era criar uma reserva de água, criar isto, criar aquilo e agora já não há interesse? Então mudou-se assim? Em 2015 que parou de encher… estamos em 2019. É assim? [estalar de dedos, como se dissesse “de um momento para o outro”]
Há uma má gestão em tudo isto. Nunca se contabilizou aquilo que se perde. Estar aqui uma barragem e estarem ali as sociedades que mais consomem, o que é que se perde entre o que se produz e o que chega lá?
LOCAL: Atenor
DATA: 20 de Novembro, 2019
GUARDA RIOS (GR):
Quantas cabeças é que tem?
PASTOR LUÍS (PL):
Agora tenho pouco, é só um cento. Já tive mais. Já tive umas duzentas e tal, quase trezentas.. Agora já vou… já vou ficando velho! (…)
GR:
E vacas, quantas é que tem?
PL:
Umas vinte e tal, ali. Vai mas vai chover vai. Parece que meio assim, parece que é água de neve!
GR:
Água de neve, como assim?
PL:
Quando começa a chover assim nesta altura, é porque é capaz de vir neve a seguir. Esta água transforma-se em neve, depois, com o frio…
(…)
PL:
Isto agora nesta altura vê-se aqui pouca gente..
GR:
Pois, nós viemos observar como é que as pessoas da aldeia também vivem. Não é só na altura de romarias e de festa.
PL:
Sim, sim, sim, sim. Conversar com as pessoas, não é?
(…)
PL:
Ali aquele baldio, corria por tudo quanto era canto, até custava passar de um lado para o outro. Agora vê-se que está seco, passa seco…
GR:
E esta chuva… Na verdade tem chovido pouco.
PL:
Sim, pouco, pouco.
(…)
GR:
As churras são quais? Estas que têm o focinho negro?
PL:
Sim. E as vacas que temos ali também são de raça mirandesa.
GR:
Depois há aquelas castanhas que têm o nome muito difícil.
PL:
Sim, sim. Tem outro nome, não sei como é que se chama isso.
GR:
Chicharras, ou… Charras, qualquer coisa assim..
PL:
Pois é… Isso dá pouco resultado, sabe? O negócio está ruim. Os borregos já quase ninguém os quer. É difícil. Vem muita carne do estrangeiro, carne exportada (sic).
GR:
Para quem é que vende?
PL:
Vendo para o matadouro. Vêm cá os negociantes, comprar uns e outros. Agora já quase ninguém vem. Anda aí um, ainda vem comprar borregos e tal, mas… pouco, pouco, pouco.
GR:
É o matadouro quê, de Miranda?
PL:
Não, não. (começa a assobiar, a dar indicações ao cão)
GR:
Mas, é seu, o rebanho?
PL:
É, é. As vacas também. Isto é tudo meu. Nunca trabalhei para conta de outros…Trabalhei, que andei, muitos anos na construção civil a trabalhar.
(…)
PL:
Já não vou mais longe. Ando aqui mais um bocado, e depois ando ali em baixo. Lá para as 17 horas, vou embora, para a curriça, para o estábulo. (Assobio) Aquele cão está a virá-las. Ele é que é o pastor.
GR:
São caros esses cães, não são?
PL:
São, são. (…) Aqui nesta zona não há nenhum.
GR:
Onde é que o arranjou?
PL:
Na Espanha, ali na Espanha. A um indivíduo que tem um rebanho de 2000 e tal… (…) É muita bom, este cão. Ele sabe que, se chegas lá em cima, que não podem subir para cima. Não vai lá, já lá foi. Esses são só para acompanhar. Isto, para se houver lobo ou assim, para… para a raposa são bons. Agora aquele, aquele é mesmo de virar.
GR:
Já teve algum problema com o lobo?
PL:
Não, por enquanto não. Agora até se vê poucos aqui. Antigamente era aqueles lobos que havia, selvagens… agora esse lobos trazem dos parques, são criados nos parques. Deitam-nos para aí… Este ano deitaram, deitaram uns poucos para aí, mas esses lobos estão habituados a ver gente nos parques. Porque são criados. E depois, vêm a gente e não fogem. Agora quando era novo, o lobo que era selvagem e vivia aí no monte, mesmo, esse era perigoso.
GR:
Era mais agressivo..
PL:
Era. Eu lembra-me a mim, quando era garoto, havia aqui.. agora é só este rebanho, mais aquele rapaz e mais outro… lembra-me a mim, havia catorze rebanhos na aldeia. Catorze. Chegava a matar, às vezes, de noite.. dormiam na cerca na noite, assim no monte, atirava com o que se chamava as cancelas, deitava o gado fora e o pastor, o pastor estava a dormir na cabana e às vezes nem sentia. Chegava a matar trinta e quarenta. É que o lobo mata e não come. Mata aqui uma, mata ali outra, mata além outra. (…) Aqueles lobos selvagens… se matassem uma e comessem, prontos. Mas não, matava aquele e deixava e ia matar mais. Eu uma vez, lembro-me um homenzito aí, que já faleceu, numa noite mataram-lhe trinta e tal sobre quarenta. Quarenta ovelhas! E sabe depois o que é que ele fazia? O lobo feria só no pescoço, no cachaço… Ficava com sangue e depois pronto. E depois aquele homezito lá andou a juntá-las com os carros das – não havia tractores nem havia nada – no carro das vacas, dos bois ou vacas, ou mulas! e levava-las lá para o aposento e depois tiravam-lhe a pele e tiravam-lhe aquela massada [?] e a gente ia lá comprar tudo a carne ao pastor. Hm? Juntava-se o povo todo, toda gente ia lá buscar carne para ajudar a pagar as despesas, pronto. Era assim. (….) E chegavam a matar burras e vitelos, vitelitos, que às vezes nem saiam, matava-os também. Era um perigo! Agora esses lobitos não… (…)
GR:
E utilizavam aqui os carretos?
PL:
Carretos como?
GR:
Aquelas cabanas que vocês faziam para ficarem durante um tempo fora da aldeia.
PL:
Sim, sim, sim. Era, era, era.
GR:
Umas coisas que acho que era com esteva?
PL:
Com palha, com palha! Eram assim meia curvadas… E depois metia-se palha. E estevas também… escovas, esteva! Escovas são aquilo.
GR:
São as giestas.
PL:
Essas aí são escovas. As pequeninas que se vêm são escovas. As giestas aqui são xaras. [Nota da Laura: em pesquisa rápida, percebi que “xaras” são “estevas”]. É diferente.
GR:
Então os piornos é o quê?
PL:
Os piornos é uma coisa assim mais baixinha que tem picos que quase não se pode agarrar com a mão. Picam muito. Aqui por acaso não há. (…), Aquilo se passar com as calças, cuidado, que aquilo tem uns picos.
GR:
Mas não é carqueja…
PL:
Não, não não. Carqueja havia aí deste lado, mas carqueja comem as ovelhas.
GR:
Mas já não há muita, agora.
PL:
Nada, quase. Carqueja há pouca coisa.
GR:
Mas havia?
PL:
Dantes havia muita! E agora aqui já é pouca.
GR:
Mas estava a dizer… utilizavam esses abrigos?
PL:
Era abrigos. Depois dormia lá com o rebanho.
GR:
Quer dizer que vocês poderiam ficar mais tempo fora da aldeia, por exemplo uma noite ou..
PL:
Antigamente os gados dormiam todos cá por fora. Agora já os metem nas curriças e lá estão. Antigamente um pastor dormia todo o tempo por cá, nunca ia para casa. Vinham-no trazer de manhã o almoço, à noite traziam o jantar – a ceia, a gente chamava-lhe a ceia – e ficávamos sempre por cá. Passava-se à mesma como agora. Agora tomas banho todos os dias, o pastor passava anos sem tomar banho! Não havia casa, não havia quartos de banho, não havia nada..
GR:
Era com a água da chuva…
PL:
Lavávamos com a água da chuva! Onde é que havia aqui um quarto de banho? Nem água da rede! Havia uma fonte.. a Associação, onde o Jambas tem os burritos… tem lá uma roda. Já viram a roda?
GR:
Sim, sim, a nora.
PL:
A nora, sim! Lá à saída.
GR:
Preta e vermelha, não é?
PL:
Sim, sim, sim. Ali, levava-se água para a escola. Que ali a associação era onde nós íamos à escola. A bomba… arrumou-se a antiga e agora puseram ali aquela bomba só para feitio. Que o poço já nem água tem.
GR:
Pois, olhei para ele e de facto não vi nada.
PL:
Não tem água… (…) E aquela fonte ali ao pé é onde íamos colher água, a parte do povo deste lado. Da igreja para cá deste lado. Por aquela rua que vai lá abaixo aos tanques. Era metade do povo. Chamava-se o povo das eiras. E para cá era o cabo do lugar. Quando íamos jogar à bola jogávamos os deste lado contra os daquele lado. Os do povo das eiras ganhávamos sempre. Era onde havia mais gente.
GR:
Pois, às vezes chamava-se o cabo da aldeia. Quer dizer que é o fim.
PL:
E depois nós dizíamos, os das eiras, “somos mais ricos que vós”. Temos a igreja deste lado, temos a capela, temos a escola, e eles não tinham…
GR:
Pois, e têm as eiras.
PL:
Era tudo deste lado. (…) E depois havia outra fonte, à saída da aldeia para cá – à saída para quem vem aqui pela estradinha – (…) era onde colhia a outra metade do povo a água. E a gente metia-se lá com os sapatos e com tudo cheios de terra, a colher água e… [?]. Já viu como é que era.
GR:
Eram mais, também. Havia mais jovens…
PL:
Havia, havia. Já chegámos a ver aqui quarenta sobre cinquenta alunos. E só tínhamos uma professora!
GR:
E era rapazes com raparigas ou era separado?
PL:
Tudo junto! O salão do café? Era ali, tudo junto! Estávamos todos naquele salão.
ATIVIDADES:
[ workshop ]
Chamar os pássaros
Dinamizado por Francisco Pinheiro e Laura Marques
Público: Turma de artes visuais do 5º ano da professora Angelina
Local: Escola EB 2 3 de Sendim
REGISTO:
Máquina foto Nikon CoolPix P100
Camera Sony RX100 V
Gravador Zoom H2N