A nossa residência em Mértola permitiu-nos finalizar a construção das quatro embarcações do colectivo: a jangada ‘It’s easier to imagine the apocalypse’ e os barcos desdobráveis ‘I’m too sad to tell you’, ‘Slow hope’ e ‘Kropotkin’, as quais testámos remando pelo Cais de Mértola até a jusante à ribeira de Oeiras, e para montante, até à ponte sobre o Guadiana.
Esta foi também uma residência particularmente importante para conhecermos a dinâmica do rio Guadiana antes e depois da construção da barragem de Alqueva. Das muitas conversas que tivemos pudemos perceber como esta barragem altera a jusante as características do rio aumentando a temperatura da água, modificando a salinidade e diminuindo a fertilidade e a limpeza das margens por já não existirem cheias.
Como consequência destas alterações surgiram espécies exóticas como o predador caranguejo azul americano, o número de enguias diminui drasticamente e tornaram-se evidentes alterações nos padrões de desova de várias espécies de peixes.
Apesar da existência de um caudal “ecológico” libertado pela barragem do Alqueva, este não corresponde ao funcionamento natural do rio Guadiana. O Guadiana é na realidade um uádi, palavra árabe que define um rio cujo leito pode estar seco a grande parte do ano com excepção da estação das chuvas. Estas alterações causam também alterações no delta do rio, diminuindo a quantidade de sedimentos e matéria orgânica que ali chegam, com consequente diminuição da sua produtividade biológica e capacidade de retenção de CO2.
Para adensarmos o conhecimento da região fizemos incursões em regiões ribeirinhas a montante de Mértola onde visitamos as Azenhas do Guadiana, cuja arquitectura foi pensada para resistir à força das cheias que já não se verificam actualmente, o Pulo do Lobo onde a água agora corre em pleno verão devido ao caudal “ecológico” do Alqueva, os Canais do Guadiana, onde existem antigas pesqueiras, e também a jusante o Cais do Pomarão, a partir do qual os minérios das minas de São Domingos eram exportados para fora do país.
Conhecemos também vários projectos locais como o Centro de Agroecologia de Mértola guiados pelo Pedro Nogueira e o António Coelho, conversámos com o Virgílio Lopes do Campo Arqueológico de Mértola, entrámos na Casa Romana: Museu de Mértola onde vimos as enormes esculturas romanas descobertas recentemente, procurámos dados sobre a qualidade da água no Centro Polivalente de Interpretação e Divulgação – ICNF e frequentámos várias vezes o Processo Regenerativo em Curso – um espaço da Terra Sintrópica com produtos e refeições produzidos localmente.
Em colaboração com Nuno Roxo, conversámos com os pescadores José Reis do Cais do Pomarão e com o Sérgio Valente da Penha d’Águia.
No penúltimo dia criámos uma performance musical improvisada sobre a jangada frente ao cais de Mértola que contou com a participação do músico e etnomusicólogo Fillipo Bonini Baraldi.
Conversa com Virgílio Lopes,investigador e membro da direção do Campo Arqueológico de Mértola, desde 1990.
LOCAL: Campo Arqueológico de Mértola
DATA: 10 de Julho, 2021
VIRGÍLIO LOPES (VL):
A história deste espaço.. é aqui que se tem concentrado os trabalhos ao longo destes quarenta e muitos anos.. Foi aqui que o Cláudio Torres começou a escavação, com os seus alunos.. com malta daqui.
E isto deu origem, não só a este trabalho de escavação, mas também a todo o trabalho dos museus. Uma das preocupações, desde o princípio, desde a primeira campanha de escavação era para “o que é que encontramos, vamos lá mostrar às pessoas, vamos lá envolver a comunidade..” isto tudo com o mítico Serrão Martins, que eu já não conheci, já não é do meu tempo e isso digamos que no século passado cimentou-se.
O nosso campo arqueológico continua um pouco com a gestão científica do conjunto museológico e temos aqui esta zona onde se tem vindo a trabalhar em continuidade.
Já fora do perímetro amuralhado, onde pensávamos que iríamos encontrar umas barracas, umas cabanas, umas casitas de pescadores, mais uma vez a arqueologia surpreendeu-nos e deu-nos umas casas com a lógica deste urbanismo(?) islamico com peças iguais, com a mesma importância científica e até museológica.
GUARDA RIOS (GR):
Isso quer dizer que o povoado se estendia até à margem do Guadiana?
VL:
Não se estendiam para a margem do Guadiana, porque não eram tontos, porque aqui tinha uma coisa a que se chamavam cheias. Essas cheias, os primeiros registros, já no século VI e VII depois de Cristo, lá os monges de Mérida – que é precisamente o mesmo rio – assinalam as tais cíclicas cheias, diluvianas como aquela que ficou ali marcada [ 7 de Dezembro, 1876 ] e que os jornais relataram como o dilúvio. Por isso só se constrói até onde as cheias vão. Claro que há cheias excepcionais, mas isso é de quando em quando. Portanto o limite da população estendia-se por ali.
O Cais de Mértola é relativamente recente, dos anos 40 do século passado, e tem a ver com outras dinâmicas. O cais era do outro lado do rio e deste claro, mas na boca da ribeira que é onde o rio alarga. Mesmo que houvesse uma cheiazeca, como alarga, o impacto é menor. E o escoamento dos cereais, portanto da fábrica, da moagem por aquele lado e deste lado o cais seria junto à ribeira [de Oeiras] ali é um porto antigo, um porto histórico, só que é um porto que não é porto, é um areal. Claro que eles encostavam, a Ponte do Rio serviria um pouco para ajudar os desembarques de coisas grandes, e depois a ligação à muralha.. era mais ou menos a dinâmica da coisa ao longo do tempo.
Isto com o Alqueva estabilizou em termos de cheias.. Mas as barragens também se enchem e aí também terão que abrir as comportas..
E depois o Rio tem outro problemas e esse assobia-se muito para o lado.. O Alqueva teoricamente assegura um caudal ecológico.. Sim, mas quem está lá a medir os quartilhos de água?
GR:
Não existem estações?
VL:
Amigo, eu não sei. Eu não tenho esses dados.
GR:
Estivemos ontem com o ICNF e eles também não sabem.
VL:
Está a ver. Se eles não sabem, como é que um curioso como eu pode saber?
GR:
Não, não é um curioso, é um profissional.
VL:
Não, nestas coisas sou um curioso, da parte histórica falo. Do resto não sei muito. Mas gostava de ter esses dados. Então quem é que controla, se não é o ICNF é quem? As Águas? Não sei.
A gente não sabe o que é que vem de cima. Nós aqui em Mértola “ah e tal a seca no rio, o rio está seco? Ah não, o rio nunca seca” porque maré acima maré abaixo. Vocês já foram às azenhas, já viram aquilo cheio de água e já viram ali uma cascata, estão ali dois metros [de desnível de água]. A área de influência do Porto de Vila Real vai até ali. Ora o que é que isto faz, isto assegura a água. O problema é a qualidade da água. Se a água de jusante do mar caminha para aí, o que é que acontece? as sardinhas qualquer dia estão aí..
GR:
Sim, não há água doce suficiente para empurrar a salina para baixo..
VL:
Vocês vêem que esta massa de água anda para cima e para baixo.
GR:
Isto é mar praticamente.
VL:
Pois isto é um rio até ali às azenhas com o ritmo das marés… e foi isso que fez de Mértola um porto importante. É esta dinâmica de vir e ir.. com dois metros.
E claro que um rio que era navegável era desassoreado, isto o desassoreamento não foi inventado no séc XX, nem no séc XXI.
Mas as cheias têm estas coisas, elas transportam e depositavam, levam e trazem…
GR:
Mas o que acontece agora é trazer sedimento do mar, e não há quem o empurre para lá…
VL:
E havia gente, se fosse preciso cavar na maré baixa, vamos lá abrir o buraco até que se afoguem.. Mão de obra não seria problema. Portanto é essa a dinâmica que faz deste sítio um sítio importante. E depois felizmente, aqui no casco histórico por razões económicas não se fizeram grandes palacetes, até fizeram, mas digamos que só agora recentemente é que a gente carrega os entulhos numa camioneta e os leva daqui para fora, as coisas [antigamente] iam-se acumulando, os vários estratos iam-se compondo.
GR:
Nos achados que vocês tem feito, nota-se que aquilo que o rio fornecia era uma componente importante?..
VL:
Nós chegamos lá pelos peixes que aparecem aqui, e pelas coisas exóticas até osso de baleia cá veio parar.. Alguém o trouxe. Até osso de camelo ou dromedário, alguém o trouxe.
GR:
Este lugar estava debaixo da alçada do Califado que também estava até ao século XIII no Algarve, é isso não é? Era uma extensão desse território..
VL:
Sim a reconquista, como sabemos, faz-se de norte para sul.. Foram vindo por aí e eles foram fugindo, aqueles que podiam.. Mas aquilo que a arqueologia nos ensinou é que aqui as casas caíram por si. Deixaram de ser usadas, casas com taipa, e com estes telhadinhos porreiros não duram muito tempo se não forem conservadas, e basta uma década para isto virar ruína. Quando vieram os cristãos da reconquista, implementaram aqui o cemitério. Ali aquelas moças estão a escavar uma sepultura, deve estar a aparecer ali o desgracado ou a desgraçada. E para vocês fazerem uma ideia, temos cerca de oitocentos esqueletos escavados aqui, é uma necrópole de longa duração – não morreram todos ao mesmo tempo como é óbvio – desde a reconquista até que construíram aquele cemitério e o reconduziram para aqui. Pós-reconquista séc XIII, os cemitérios vêm para dentro de portas, até então os cemitérios eram todos fora.
GR:
Eu estive em Loulé o ano passado e percebi um pouco qual foi a estratégia do mundo cristão para diluir a cultura árabe.. Fecharam os hammams, fecharam os banhos islâmicos.. Houve assim uma espécie de alteração do padrão religioso.. foi também por uma coisa cultural.. Por erradicar determinadas práticas culturais do mundo árabe.. Aqui foi mais ou menos a mesma filosofia?
VL:
Uma coisa são as histórias que nos contam, outra coisa é a realidade. Eu arqueólogo gosto de olhar para os sítios, e estou a ver a mesquita. Quando aqui chegaram, durante três séculos utilizaram a mesquita quase como ela era, aqui era o minarete portanto o sino para chamar lá na oração.. Vê-se ali a imagem do arco de armas, não estou a inventar nada.. Substituíram o crescente pela cruz da ordem de Santiago, meteram-lhe um acrescento para por dois sinos e só no séc. XVI é que isto ganhou outra reformulação. Houve assim umas mudanças tão radicais? A arqueologia não nos tem dito isso.
GR:
Foi uma transição lenta?
VL:
Possivelmente sim. Eu não estou a dizer que não tenham andado à porrada aí uns contra os outros. A gente na nossa triste memória já tem assistido a algumas guerras, porrada, bomba.. Vêm-se embora ficam lá os mesmos.. se calhar houve para ali uns filhos feitos off the record.. Sim vem uma elite mas o Zé das couves não era o mesmo? Rezar para jesus ou rezar para meca até é o mesmo sítio. [ risos ]
O cristianismo, esta gente do norte da europa eram mais radicais, ao contrário dos outros. Então durante a ocupação islâmica não havia um bispo ali em Cacela e em Loulé? Para haver um bispo tem que haver padres.. Fariam aquilo clandestinamente? Deveria haver umas igrejas. O bispo de Lisboa cristão que existia, antes da chegada dos famosos Cruzados, tinha lá a sua vida.
GR:
Uma coexistência.
VL:
Ensinaram-nos a história muito preto e branco.. os gajos bons.. os outros.. Epá mas a realidade.. episódios, bombas, guerras, batalhas.. Sim, mas nos outros trezentos e muitos dias do ano andavam sempre à porrada? A arqueologia tem nos demonstrado outras coisas. E esta malta abandonou as casas, possivelmente foi mais para sul, pegaram nas coisas mais valiosas seguramente, olha nas casas de banho ficaram lá os cântaros, o alguidar, o supérfluo ficou. E não há aqui nada.. Aqui havia uma zona nobre, uma zona importante, ligada ao poder religioso, ligada ao poder militar, uma zona fortificada, aquilo que deveria ser o coração do sítio, não apanhamos extractos de carvões. As coisas caíram. Na sequência que apanhámos, estavam lá os objetos, caíram-lhes o telhado, a seguir caem os muros, depois vêm outros artistas começam a abrir covas para enterrar lá os mortos, baralham um bocadinho o coiso e pronto.
GR:
E depois não há um reaproveitamento desse material para fazer novas edificações?
VL:
Desde o mundo islâmico, desde as casas islâmicas até hoje, este espaço deixou de ser construído, passou a ser necrópole. As necrópoles, os cemitérios, são sítios onde é preciso ser muita mau para se construir.. Em cima dos cemitérios não se constrói. E vejam que o cemitério, inicialmente [ se circunscrevia ] aqui à volta da igreja.. e nos inícios do séc. XIX.. é construído aquele cemitério [ o actual cemitério da vila velha de Mértola ]. E este espaço [ em frente ao Castelo, onde se situa o actual sítio de escavação do Campo Arqueológico de Mértola ], fica mais ou menos abandonado, possivelmente horta.
GR:
Os primeiros indícios de ocupação aqui em Mértola são de que altura?
VL:
Este sítio ganha importância, quando os metais passam a ser importantes para a vida.. O cobre, antes do cobre, o ouro e a prata, que são aqueles que reluzem mais e que são os primeiros a desaparecer.. E desde que os metais entram, que Mértola ganha importância. Na idade do ferro já era um sítio com uma grande construção envolvente, [iria até] atrás do pinheiro, o cerro de Benfica, iria ali até ao cerro da Nossa Senhora das Neves, passaria para o outro lado e ia até ao Convento lá atrás. Na cumeada desses cerros existia uma muralha, claro que não era tudo habitado. As cidades da idade do ferro, era a cidade viva, mas também as hortas, os sítios para a lenha, os sítios para os gados. Agora isso implica aqui uma construção brutal e haver gente. Nós ali no cerro de Benfica fizemos lá umas sondagens e vamos apanhar uma muralha de quatro, cinco metros com turbilhões portanto, aquilo que hoje se vê uma cumeadazinha tem muito.. Epa construir em pedra solta tudo isto..
GR:
É uma espécie de castro?
VL:
Um castro brutal. Um castro castro seria mais esta zona do castelo.
Mas se quisermos ir mais atrás, o Abel Viana mais uma vez, nas prospecções que fez no rio, apanhou aqueles bifaces que poderíamos ir ao paleolítico se quiseres.. Neolítico seguramente e por aí fora.. E isto ganha um impulso maior pela história dos metais que vem pelo período Romano, a antiguidade tardia.. [ No período ] muçulmano, no início ainda deveria haver por aí alguma coisa… são esquecidas e depois são retomadas em meados de séc. XIX, meados de século XX, a exploração dos ingleses, Mina de São Domingos, capitalismo puro e duro.
GR:
Mas a mineração acontecia ali na zona de São Domingos?
VL:
Essa era a maior mina! Se olharem no território tem outras sondagens, tem outros buracos..
GR:
Portanto, encontram-se outros vestígios de actividade de mineração é isso?..
VL:
Encontram-se, encontram-se. O problema das minas é que os romanos souberam descobrir as minas todas.. Ao explorá-las o que é que ficou de cada período? É muito complicado aferir isso. Mas que há actividade mineira há, nesta zona antiga.
GR:
E a Neves Corvo, e outra mina mais próxima não é?
VL:
A Neves Corvo é outra mina próxima que teve também exploração antiga, não é só de agora. Aljustrel também era uma mina…
GR:
Essa já é mais longe não é?..
VL:
É, mas se olhar para o mapa e se tiver que embarcar alguma coisa, acaba por vir aqui ao Porto de Mértola. O Alentejo como vocês sabem não tem portos, tirando Sines que é o grande Porto. Portanto, durante boa parte do ano, esse material poderia sair daqui por Mértola. Lá estão os caminhos para Beja, os caminhos para Castro Verde. E depois estas eram as grandes minas, de certeza que haviam muitas com outra escala.
GR:
Antes de ter uma estrutura tão complexa.
VL:
Os Romanos andaram nas Minas de São Domingos, só que a exploração era em poços e galerias, não era a céu aberto como hoje, a grande parte delas são isso, são poços. Umas bem sucedidas, outras talvez nem tanto.. Mas aqui em torno da Ribeira de Oeiras há aqui uma série de coisas, inclusive o topónimo Cerro do Ouro e tem lá minas, mas se eram de ouro ou não, não sei lhe dizer.
GR:
Como se chama a outra ribeira que passa pela Neves Corvo?
VL:
Ribeira de Carreiras.
19:11
VL:
Aqui basicamente temos o nível da Necrópole, daqui a bocado já vamos espreitar. Depois abaixo da Necrópole as casas islâmicas, portanto isto seria um bairro com as ruas com (19:21) os saneamentos, com as fossas. Também percebemos a mutação da casa, ou seja, a casa num determinado momento tem uma volumetria, a família cresce, e dividida, e adaptada, também é perceptível esses movimentos e que casas e que temos aqui? Temos as últimas casas, as mais recentes. Depois por aí a baixo, no período islâmico (…) foram comidas por aquilo que veio a seguir. Abaixo dessas casas, estamos a apanhar aqui um complexo religioso, cristão seguramente, dois batistérios, ali está um, ali está outro. Associado a esses batistérios uma coleção de frescos fantásticos, infelizmente, aquilo que a gente encontra são fragmentos. E é muito difícil fazer-se o puzzle, portanto isso estou a trabalhar, e digamos a minha área de trabalho por excelência. Temos os batistérios, falta-nos a igreja (…) mas isso provavelmente está aqui por debaixo das casas islâmicas. Se fosse no início do século passado, levantávamos as casas.. Esta dinâmica, esta interculturalidade, é a riqueza de Mértola. Possivelmente estaria aqui um dos fornos, porque lá em baixo na zona do rio, haveria outro e as escavações que fizemos na casa cor de rosa, eram aquela coleção de estátuas, que aliás grande parte da estatuária foi encontrada ali naquele sítio, deve fazer parte de um cenário monumental, quem chegava a Mértola vinha pelo rio, aí no século I deveria ser assim uma coisa impactante com gajos de quatro metros.
GR:
É essa a dimensão da estatuária que aparece ali? E ela está onde?
VL:
Estão ali ao lado [ da casa cor de rosa ] é um trabalho de restauro que tem de ser feito, os blocos grandes impressionam.
GR:
Isso foi o ano passado?
VL:
Isto foi há dois anos, antes da pandemia. Dois mil e dezoito, dois mil e dezanove. As peças estão guardadas no edifício da câmara e esperamos que dentro em breve comece o processo de restauro e esperamos dentro em breve poder mostrá-lo.
GR:
Mas poderíamos vê-las?
VL:
Epá eu não sou dono delas, mas se baterem a porta. Elas não são minhas, ajudei a descobri-las, mas força. Estão publicadas quer dizer.. não está nos segredos dos deuses. O estudo daquilo vai dar coisas interessantíssimas. Mas a ideia é que podia esta cidade, no período romano, ter dois fornos, ter dois espaços digamos de negócio. Faz todo o sentido, lá em abaixo. Aqui também faz sentido, porque é o cenário na direção Beja, na direção mediterrânica e em ambas as pontas, claro que aqui não haveria propriamente Castelo, mas isto não é um sítio desprezável pela sua topografia, não deixava de ser.. Claro que há muita coisa que a gente não sabe e que ainda não chegou lá..
VL:
Diz-me que a suspeita da igreja principal, contemporânea do batistério está por debaixo das casas islâmicas.
GR:
Então quer dizer que já havia ocupação cristã antes dos romanos. Eram os tais Paleocristãos?
VL:
Sim, eram os primeiros cristãos.. Esses não eram paleo, eram Cristãos assumidos para construir um cenário destes, com dois batistérios.. Em termos portugueses só temos um caso que temos dois batistérios que e em Idanha-a-Nova. Mas o que a arqueologia nos demonstrou e que não são contemporâneos, portanto um sucedeu ao outro. Se quisermos ir mais longe temos que ir a Barcelona. Ora comparar Barcelona com Mértola.. Ou ao contrário.. Até me parece mal.. Mas em termos reais aquilo que nós temos aqui.. epá isto é primeira divisão e lá coitados.. Tem aquilo que têm.. têm restos.. Porque a cidade comeu-se, tem as suas dinâmicas, mas em termos museológicas.. É a mesma coisa que compararmos a feira de aqui e a feira de Castro, a de Castro é uma grande feira, a feira de Mértola é uma feirica.. E neste período é ao contrário.. Portanto tinha que haver aqui muito dinheiro para se poder construir isto. E claro que tudo isto é construído, tipo as peças dos legos, com os materiais daquilo que haveria no período romano. Havendo aí colunas feitas e marmores quase prontos a usar…
GR:
Porque o mármore mais perto daqui são os de Estremoz não?
VL:
Não, aqui em Beja, há um mármore de Trigaches, mas é um mármore de muito má qualidade.. Aqui estamos convencidos que o mármore vinha pelo rio acima e vindo pelo rio acima.. Porque olhem para o mapa, uma coisa é transportá-lo pelo rio, outra coisa seria em carroças. Estremoz, Vila Viçosa é alto Alentejo.. Que Estremoz e Vila Viçosa tenham alimentado Mérida, é perfeitamente plausível pela distância.. Mas aqui eu penso que seria muito mais fácil trazer as coisas pelo rio… umas das coisas que estamos a trabalhar, que gostaríamos de saber é de onde provêm os materiais das casas. Porque tem mármore também.
GR:
Poderia vir do mediterrâneo?
VL:
Qual Mediterrâneo estamos a falar? Há pedreiras na Turquia, há pedreiras na Grécia, há pedreiras em Itália..
GR:
Mas por análises não se poderia lá chegar?
VL:
Consegue-se mas não são baratas.. Quando a gente pede um favor a uma pessoa. Epá vê lá se despachas as análises que estou com muita curiosidade.. O que é que quer que eu lhe diga mais? Se não havia que desembolsar uns cobres valentes..
GR:
Quando falou que encontrou peixes, presumo que o esqueleto ou algo assim, que tipo de peixes é que era?
VL:
Há peixes do rio, há peixes do mar.. temos isso publicado na revista de arqueologia medieval… fez-se um artigo sobre o material … de algumas das fossas daqui que liga as casas islâmicas. A história dos peixes do rio não é aquilo que é hoje. O D. Sebastião antes de ir lá para Alcácer Quibir perder as botas, veio aqui assistir às azenhas à captura do Esturjão. E falar ai com os pescadores mais velhos.. a riqueza do rio era outra. Esturjão em Mértola? Epá eu não estava cá, mas as fontes relatam isso. Há quem diga que as moedas romanas cunhadas aqui em Mértola têm um esturjão.. Se não é um esturjão, é um peixe grande.. E para o rei vir aqui assistir, é porque deveria ser cá um espetáculo e pêras.
GR:
No Douro, lá em cima, eles relatam o esturjão até há umas dezenas de anos atrás, há fotografias.. Portanto é super plausível..
VL:
Portanto isto para dizer que sabemos pouco do que seria. Mas aqui como um porto, epá chega tudo, e o mar não está tão longe. Estamos a 66km pelo rio. Portanto eu diria que poderia chegar cá peixe fresco, acho que sim.
GR:
E como é que as pessoas tinham acesso a água aqui? Vemos aqui dois batistérios, que requerem água, estamos aqui num morro? Estamos dentro de muralhas, era importante ter acesso à água..
VL:
Estamos. Essa questão é importante, como é óbvio. Primeiro deveria haver muito jovenzito e burros.. Acabou-se a água vão buscá-la ao rio, hoje não vês a telenovela. Eu nas minhas memórias.. eu tenho memórias de ir com o cântaro à fonte, estava lá sentadinho para agua aparecer, colhê-la com um copo e aquilo poderia demorar uma hora ou duas.. Opa e era o trabalhinho da criança. Isso pode ser verdade, mas o Castelo tem uma cisterna.
GR:
Tinha que ser autónomo.
VL:
Neste complexo religioso, deveriam as águas dos telhados ir para onde? Ir lá para baixo, para a cisterna, que era um criptopórtico que foi seccionado, que foi fechado e que ali levava muita água. No período islamico aquilo é utilizado como lixeira e não como reservatório de água, mas quase todas as casas, o pátio central.. Os telhados confluíam para ali, ora aquela água recolhida numa talhas..
GR:
Portanto água recolhida das chuvas sobretudo..
VL:
E deveria haver cisternas.. Por exemplo, aqui na rua paralela à muralha mais ou menos, conheço uma série de casas em que cada casa tem uma cisterna.
GR:
Sempre a partir das águas da chuva, não há então nenhuma mina, nenhuma nascente aqui..
VL:
Não há nenhuma nascente aqui. Relativamente a água do rio, os relatos já falavam de água de má qualidade..
GR:
Por causa da extração do minério..
VL:
Que era turva e por aí fora.. O pessoal recorria a fontes, há aqui uma série delas à volta e essa deveria ser a água para beber. A outra água deveria ser de cisternas, de reservas..
GR:
Portanto essas fontes eram à volta da muralha..
VL:
Aqui onde está agora o Pavilhão Multiusos era uma fonte.. Aliás quando construíram o pavilhão, deram num lençol freático, parecia uma piscina..
ATIVIDADES:
[ debate ]
Dinamizado por Álvaro Fonseca, Francisco Pinheiro e Nuno Barroso
PÚBLICO: jovens, adultos
DATA: 3 Julho
DURAÇÃO: 1H30
LOCAL: Cais de Mértola
Participantes convidados:
João Ruivo e Paulo Silva – Chão Nosso Alentejo;
Pedro Horta, J.P. Martins e Catarina Valério – Movimento Alentejo Vivo;
Susana Gómez – Campo Arqueológico de Mértola;
Nuno Roxo – Associação de Empresários do Vale do Guadiana;
Rita Sales – De Boca em Boca;
Pedro Nogueira – Centro de Agroecologia de Mértola;
Samuel Melro – Castro Verde
[ fluviofelicidade ]
Manobras fluviais e convívio
Dinamizado por Álvaro Fonseca, Francisco Pinheiro, João Ferro Martins e Nuno Barroso
Colaboração com João Abreu e o Museu da Paisagem
PÚBLICO: crianças, jovens e adultos
DATA: 4 Julho
DURAÇÃO: manhã
LOCAL: Cais de Mértola
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O colectivo participou em dois eventos públicos co-organizados pelo Projecto de Boca em Boca e o Museu da Paisagem: ‘caminhada com história’ da Mina de S. Domingos à Achada do Gamo (3 Julho) e ‘Escuta da paisagem’, dos lugares e de quem os habita / Conversa de Boca em Boca, Santana de Cambas (4 Julho).
REGISTO:
Câmara fotográfica digital Panasonic-Leica Lumix DMC-TZ70
Câmara Sony RX100 V
Gravador Zoom H2N
Microfones de contacto
Hidrofones