Ser rio – conciliar sistema legal e ecologia

Eu sou o rio e o rio sou eu. Provérbio Maori
You cannot dam a river and have it free. Suprabha Seshan

A atribuição de personalidade jurídica a elementos naturais, como rios ou montanhas, tem sido divulgada nos últimos anos como uma importante conquista dos movimentos ambientalistas, mas também das populações ribeirinhas (ver p.ex. aqui ou aqui), e tem sido acompanhada pelos movimentos mais abrangentes de reconhecimento legal dos direitos da natureza (ver p.ex. aqui ou aqui), e dos rios em particular (Declaração Universal dos Direitos dos Rios, 2020). O processo teve início apenas recentemente na Nova Zelândia com a designação do parque natural Te Urewera (2014) e do rio Whanganui (2017) como sujeitos legais de direitos. Processos idênticos decorreram na Índia (rio Ganges e o seu afluente Yamuna), em comunidades locais nos EUA, na Colômbia (rio Atrato) e já este ano no Canadá (rio Muteshekau-shipu). Estas iniciativas pretendem reverter a ideia de que os bens naturais são recursos que podem ser explorados e rentabilizados ao abrigo do direito de propriedade consagrado nos sistemas legais, que valoriza aqueles bens em função da sua utilidade ou da sua relevância para os seres humanos. Dar personalidade jurídica aos bens naturais é reconhecer que têm valor intrínseco, independentemente do uso ou função, e são recursos finitos, e que a espécie humana é parte – e não proprietária – dos ecossistemas.

Rio Pônsul (bacia do Tejo)

Esta visão integrada entre humanos e natureza faz parte das cosmovisões de vários povos indígenas, para quem as entidades naturais (florestas, rios, montanhas) são seres vivos, com a sua agência e identidade próprias. Para muitos desses povos não há dissociação da sua existência com a natureza: convivem e compartilham com ela a construção dos seus modos de viver, costumes e tradições. Por conseguinte, ao adoptar esta perspectiva indígena e incorporá-la no sistema legal, reconhece-se que um rio, por exemplo, é um ser vivo titular de personalidade, de direitos e garantias. Pretende-se assim acautelar a proteção desse bem natural, cuja representação legal é mediada por guardiões designados para o efeito (em geral, representantes das populações que dele dependem directamente), agindo sempre no seu melhor interesse e respeitando ao mesmo tempo o seu valor intrínseco.

Convém notar que aquelas iniciativas só se materializaram nos últimos anos, após décadas de acumulação de pensamento e conhecimento sobre ecologia, assim como de reivindicações e conflitos, protagonizados quer pelos movimentos ambientalistas, quer pelas comunidades indígenas. Por exemplo, a luta pela reapropriação do rio neozelandês pelos Whanganui Iwi (povo indígena Maori) durou mais de um século (iniciou-se na década de 1870)! Trata-se na verdade de um confronto entre visões de mundo radicalmente diferentes: por um lado, a do modelo socioeconómico globalizado (de matriz europeia, antropocêntrica e colonial) baseado na ideologia neoliberal e na economia de mercado que promove o materialismo, o utilitarismo, a acumulação e a usurpação, e, por outro, a das sociedades indígenas cujas práticas quotidianas promovem o exercício colectivo de responsabilidade em proteger, conservar, prosperar e melhorar no longo prazo para assegurar o bem-estar das gerações futuras. Como realça o académico e político Maori Pita Sharples: “Ambos os modelos de sociedade buscam aumentar o valor, mas a diferença está em como cada um valoriza o recurso: pelo lucro que pode ser obtido? Ou pelo contributo em taonga (conceito Maori afim de património ou riqueza, material e imaterial) para a sobrevivência do grupo?” (citado aqui)

Arneiro (bacia do Tejo)

A actual crise ecológica global poderia ser uma oportunidade para transformar os valores sociais e culturais assim como os sistemas políticos, jurídicos e económicos das sociedades contemporâneas que não foram capazes de impedir a destruição e degradação dos bens naturais – bastaria invocar os desastres ambientais que ocorreram no Estado de Minas Gerais (Brasil) como resultado da rotura das barragens de Mariana (2015) e de Brumadinho (2019) que afectaram as bacias dos rios Doce e Paraopeba, respectivamente (ver p.ex. aqui e aqui). A introdução de reformas no sistema jurídico com a incorporação dos direitos da natureza e da atribuição de personalidade jurídica aos bens naturais são passos importantes para uma reconciliação das leis humanas com as da natureza, mas são claramente insuficientes (ver também aqui). O que está em causa é também um sistema económico que é incompatível com a sustentabilidade ambiental e a manutenção dos ecossistemas, assim como uma visão dominante do mundo nascida do materialismo e racionalismo cartesiano e intensificada pela hegemonia do paradigma tecnocientífico que dessacralizou a natureza e desvalorizou modos de vidas e cosmovisões considerados primitivos e retrógrados. Precisamos pois de reconciliar o direito, mas também a economia e a ética, com a ecologia. De recuperarmos uma visão de mundo ecocêntrica que reconheça os humanos como parte integrante de um mundo mais-que-humano cujas componentes são interdependentes e têm valor intrínseco – ou seja, são sagradas. Para que os nossos modos de vida e os nossos valores se realinhem com a continuidade da vida e dos ecossistemas dos quais dependemos.

Rio Maçãs (bacia do Douro)

Termino invocando um magnífico texto poético (‘Cry me a river’) da educadora ambiental Suprabha Seshan, sedeada em Kerala (Índia), onde ela tece uma elegia aos rios adoptando a voz de uma mulher junto ao rio Kabini (estado de Kerala, sudoeste da Índia) que se dirige às mulheres ao longo do rio Chalakudy (mais a Sul) que lutam contra a construção da barragem de Athirapally. Transcrevo excertos das suas palavras inspiradas e comoventes:

It is said that the currents in the economies are more valuable than the currents in the ecologies. All these flows (material and immaterial, invented and real), are interchangeable. It is said that cash flow is like river flow, that money equals currency equals flow equals ecology equals economy equals happiness equals food equals dynamic business deals, equals the construction industry equals upliftment of poverty.

It is said that the living world is an illusion, and the electrified world is real. It is said that the living world is needed to deliver us to the pinnacle of prosperity exemplified by the machine world, and that this is our glorious destiny.

Rivers are not alive, it is said. They are, like factories and cars, systems that can be taken apart and put together. It is said that the world’s economy needs the world’s rivers, the world’s oceans, the world’s forests, and the world’s people. That the world’s economy is infinitely more important than the world’s ecology, which is now measured at $33 trillion (only). That the currents between bank accounts flow sweeter than the waters of a river, enabling our evolution as a species, by nourishing our bellies, our minds and hearts and ever-demanding bodies. Nearly all the rivers in the world have been dammed, what’s your worry, are you not being supported by the economy?

Rivers are needed for progress, it is said. Communities along rivers can be sacrificed for modern culture. Historical and continuing injustices are irrelevant, it is said, for now there is progress. Resettlements, the disfigurement of ancient homes and biomes, and the shunting of land-based cultures into digital smart cities (unsmogged, unpolluted, uncrowded, uncriminal, unreliant on the earth) are necessary undertakings (…) For powering the virtual flow, delivering more goodness, happiness and wellbeing than the rivers could ever do if they were free flowing.

Rivers are transport systems for trade, it is said.
Rivers are beautiful, it is said.
River-front property is costly, it is said.
Rivers attract millions of tourists, it is said.
You can’t step into the same river twice, it is said.
Rivers make great metaphors, it is said.
Life is like a river, it is said.
Riverlike, we flow, it is said.
Rivers are the arteries of the planet, it is said.

Álvaro

Imagem de destaque: Pego das Portas (rio Tejo)

Nota: este post foi estimulado pelo recente envolvimento do projecto Guarda-Rios num grupo de estudos que visa o mapeamento social, cultural e político do Rio Tejo (coordenado por Lúcia Correia), integrado no projecto Terra Batida (liderado por Rita Natálio).