Os padrões que interligam: por uma (est)ética ecológica na gestão dos territórios ribeirinhos

Uma das ideias centrais formuladas pelo antropólogo e pensador sistémico Gregory Bateson (ver p.ex. aqui ou aqui) é a de que a nossa visão do mundo (que informa o modo como agimos sobre ele) é construída culturalmente, ou seja, é condicionada por ideias e racionalizações que não representam necessariamente aquilo que o mundo é na realidade. Segundo Bateson, o ‘mundo real’ é constituído por relações e não apenas por coisas/entidades, nem pelas racionalizações fragmentadas que construímos através das nossas epistemologias especializadas (biologia, antropologia, sociologia, etc.). Daí a sua proposta do conceito de ‘ecology of mind’ para descrever a cognição humana como uma ecologia de percepções, interpretações, intuições, etc. – já que o ser humano, como ser natural, é simultaneamente sujeito e agente no processo de (auto)conhecimento do mundo. Um dos desafios desse processo é a complexidade do mundo real, espelho da sua constante mudança moldada pelas múltiplas interacções entre todos os seus elementos e processos. Para o ecólogo David Abram (ver p.ex. aqui), a nossa percepção ecológica do território requer que estejamos inseridos corporeamente e vivencialmente na sua complexidade, acolhendo o carácter parcial e subjectivo da nossa perspectiva. Mas dessa complexidade emergem padrões ou regularidades que podem ser apreendidos racionalmente, mas que, segundo Bateson, são melhor apreciados por uma sensibilidade inata nos diferentes ser vivos, embora com diferentes graus de sofisticação, onde se inclui a apreciação estética e o pensamento associativo. Aqueles padrões tendem a apresentar fortes afinidades mesmo que surjam em diferentes dimensões da realidade – ecológica, cultural, social ou antropológica. Para o investigador transdisciplinar Sacha Kagan “O processo de busca da sustentabilidade obriga-nos a aguçar as nossas sensibilidades para as interdependências nos desenvolvimentos contemporâneos (in)sustentáveis, e para as complexidades ricas e vitais da NaturezaCultura. Isto é tanto um imperativo estético quanto ético. (…) Uma arte que esteja envolvida no tipo de estética descrita por Bateson pode fazer-nos voltar a ficar envolvidos numa comunicação mais ampla-do-que-consciente, reconectando-nos ao nosso conhecimento incorporado e às várias fontes intuitivas e subconscientes de saber que se encontram dentro de nós [de que fala Abram]. (…) a estética da sustentabilidade não deveria ser concebida como uma medida fixa para alguma forma de progresso estético optimizado ou excelência estética. Ao invés, deve permanecer enraizada e contextualizada firmemente em comunidades por toda a sociedade, com uma ampla diversidade de formas possíveis de concretizar uma experiência estética da complexidade.” (citações retiradas daqui)

Margem da albufeira do Alqueva (Guadiana) Outubro 2020

Os rios constituem metáforas poderosas para invocar a relevância da visão sistémica e da (est)ética ecológica sugeridas por Bateson e para compreender os perigos de quebrar os elos ou interromper os fluxos constantes de informação que fluem entre todas as coisas e seres através das interacções que estabelecem entre si (ver p. ex. aqui). Como afirma Bateson: “Break the pattern which connects and you necessarily destroy all quality.

A ave guarda-rios e a profissão de guarda rios emergiram de processos mais ou menos longos de interacções de natureza biofísica/ecológica ou cultural/social com o seu ambiente, mas são ambos expressões dos padrões invocados por Bateson na medida em que partilham afinidades ontológicas e processuais. A sua identidade e continuidade, bem como as suas qualidades intrínsecas, dependem pois da preservação de equilíbrios entre diversos factores ambientais, sejam eles naturais ou sociais.

Olival, Arneiro (Tejo) Outubro 2019

As observações, pesquisas e vivências consumadas durante as residências Guarda-Rios, em que tentámos praticar uma abordagem sistémica e de inserção no território, mostraram por exemplo como a forma de nos relacionarmos ou de gerirmos o território depende de como percepcionamos e valorizamos as realidades desse mesmo território, mas também da nossa capacidade de avaliar/sentir as relações que lá existem (no espaço e no tempo) através de uma imersão e escuta demoradas. Aquelas residências revelaram também como certas visões enviesadas ou parciais das realidades locais, que não têm em conta os diferentes níveis de toda a sua complexidade (as colaborações e harmonias, bem como as contradições e conflitos) ou não reflectem as suas múltiplas valências e virtudes e, portanto, o seu real valor, têm resultado em diversas disfuncionalidades e perdas, quer de qualidade de vida e de satisfação das suas populações, quer da integridade e vitalidade de diversos habitats naturais. De uma forma mais abrangente, a destruição e a insustentabilidade ambientais parecem ser o resultado mais vasto das visões e formas de gestão territorial que ignoram ou desconsideram as perspectivas éticas ou estéticas em prol dos modelos que privilegiam o utilitarismo e o curto-prazismo economicistas. Poderiam uma ética ecológica ou uma estética da sustentabilidade baseadas nas abordagens de Bateson, Abram ou Kagan sanar ou reverter as disfunções, quer ambientais, quer sociais, que afectam os territórios ribeirinhos? Talvez sim, mas para tal seria necessário que os diversos agentes locais as transformassem em práticas imaginadas e negociadas colaborativamente, e percebessem as consequências desastrosas a médio prazo de não mudarem de rumo ou de paradigma.

Álvaro

Cabana de pescador (Lagoa de Óbidos) Fevereiro 2020

Imagem de destaque: Raíz de loendro, rio Ardila (Guadiana) Outubro 2020

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